Hoje apetece-me

Hoje apetece-me. Apetece-me escrever em Português. Já não o faço à muitos anos. As últimas linhas de que me recordo devem estar magneticamente registadas nalgumas disquetes cheias de pó perdidas nalguma gaveta da casa da sogra. Não sei o porquê deste súbito impulso de escrever na língua materna. Alguma coisa se terá passado hoje que me fez redireccionar a forma de pensar. Não deixa de ser engraçada toda esta vontade. Será que os meus votos de início de ano se irão finalmente concretizar? Será que estou de novo a fantasiar vontades esquecendo a realidade, mais conotada com a palavra em Inglês? Não sei... Não me interessa. O que eu quero é escrever. Escrever em Português, nem eu sei o quê. As palavras vão passando para o teclado, por vezes de uma forma pouco ordeira, que me obriga a voltar atrás com alguma regularidade, de uma forma constante e sem objectivo.

Estou a escrever e a ouvir música. O ritmo ajuda a manter os dedos em movimento, a canção neste instante é o Danúbio Azul. Sempre achei piada ás valsas de Strauss. São tão leves e primaveris que me deixam sempre bem disposto. Deus sabe o que eu preciso de ficar bem disposto. Se fosse outro dia já teria embarcado na deixa e começado um choradinho acerca das minhas misérias. Hoje não. Hoje estou a escrever em português.

Acabou a valsa e começou Sonic Youth. Isto não, não estou com vontade. Passemos á frente e voltemos a temas mais clássicos com Bach. Mas não dura muito tempo, esta versão é muito moderna para ser apreciada. Estranho, a Last.fm costuma acertar com o que eu quero ouvir, mais até do que eu próprio. Hoje não, tenho de estar constantemente a mudar de faixa. Agora passei para Tears For Fears. Uma das primeiras músicas da minha adolescência. Do tempo da descoberta do Top of the Pops, ou do equivalente à época na televisão estatal, única e de dois canais, embora apenas um tivesse cobertura nacional.

O que me faz lembrar as disquetes. Palavra nova par alguém com a minha idade. Quando aprendi a escrever não havia disto. Muitos textos escrevi á mão e perdi em qualquer recanto das diversas fases do crescimento de uma personalidade. Transcrevi alguns depois num computador Olivetti com apenas uma drive de 3 1/2 e 640kb de ram. Tanta palavra nova, tanta medida nova. Esse não foi o meu primeiro computador, foi o segundo. O primeiro foi um ZX Spectrum 48k. Agora tenho mais capacidade de processamento no telemóvel do que nas duas máquinas juntas e 1000 vezes mais espaço de armazenamento disponível. Evoluções.

Lembro-me de ir para uma pastelaria em Santo Tirso no final das aulas, devia ter uns 16 anos, escrever num caderno ou em qualquer folha avulsa que estivesse a jeito. Esse tempo roubado com a desculpa de perder a camioneta foi intenso. Foram dias em que as emoções se encontravam à flor da pele, a serem descobertas pela primeira vez. Tão superficiais estavam que transpiravam para as folhas guiadas pelas esferográficas. Não escrevia com tinta, escrevia com alma destilada pela pele.

Agora estou com a Primavera de Vivaldi. As Quatro Estações são uma das minha peças preferidas. Não consigo ficar indiferente quando a ouço. Realmente hoje estou com uma disposição diferente... Se calhar é como o Bob diz, aquele com apelido de Dylan, a resposta está no vento que passa. Será que nos basta ouvir o vento para encontrar as respostas? Será que precisamos de respostas? Muitas vezes tenho dito que a resposta está na pergunta. Acredito mesmo nisto. Se tenho alguma fé, além da necessidade de apoio espiritual nos dias apertados, é a de que a pergunta arrasta a resposta. Estão ligadas de uma forma inconsciente, mas disponível para os atentos, aos que se interrogam acerca do que os motiva.

Carmen, Marcha do Toureiro. Outra peça com vontade de ser ouvida. Hoje a minha filha esteve a ver o recital da escola de música de uma amiga. Não posso dizer que tenha ficado impressionado com as actuações. São criança normais com o gosto da música. Só isso já vale muito, mas apenas esse muito. No final fomos jantar quatorze pessoas, pouco conhecidos, sem grandes denominadores comuns. No fim do jantar fomos a casa da miúda da música. Serviu para sair de lá com um rebento amarrado a um violino. Não é que me importe, até gosto. Mas não foi isso que fez com que eu quisesse escrever em português.

Agora é uma Sonata ao Luar a propósito da qual uma vez Virgílio Ferreira disse que o gosto dos outros lho tinha tirado todo. Adoro esta frase. Quanto a Beethoven, só posso dizer que fico sempre impressionado com a forma como constrói imagens com sons. esta peça não se podia chamar de outra forma, não faria sentido com outro nome.

O que se passou então. Se calhar eu sei, se calhar não quero saber, se calhar não tenho coragem para o assumir pois não já não sei sentir. Se calhar tenho primeiro de voltar a aprender, a descobrir as emoções que enterrei com as opções que fui fazendo ao longo dos anos. Talvez esteja de novo a destilar palavras que passam pelos dedos para um écran. Outra palavra nova. Nem sequer poderia estar bem escrita da forma como aprendi esta maneira de juntar letras.

Estou a ficar com frio. Estou a ficar sem tempo. Quando o dia nascer quero ir para a piscina. Preciso de voltar a nadar. Mas fico, pelo menos até acabar Brahms...

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