Ana

1) Ana,

Não sei há quanto tempo não escrevo uma coisa assim,mas tenho de tirar as coisas de dentro de mim. Aliás,nem sei bem por onde começar. Mas sei o seguinte, vou escrever o que tenho de escrever, pelo menos a parte que conseguir. Acaba sempre algo por ficar de ser dito, os franceses chama a isso o espírito da escada, acho piada à designação. Pode dar-se o caso de fazer uma figura de parvo de todo o tamanho, não me importo, não me importo de todo. Pior que fazer figura de parvo, pior do que ter de admitir que fiz uma porcaria é não fazer nada.

Por isso vou escrever isto.

Há uns meses não pensava que isto pudesse acontecer, nem pensava no assunto, mas acho que o destino é uma coisa a que não se pode escapar,embora não faça ideia de qual seja esse desígnio ao qual posso estar sujeito. Sei que tenho de escrever isto, depois não sei.

Há coisas que não entendo. Não entendo como consigo falar de tapetes e dizer que ele é persa ou russo ou outra coisa qualquer sem quase nunca ter entrado numa casa de tapetes. Devias ter-me visto a explicar à minha mãe as cores do tapete dela e mostrar na net o que queria dizer com aquilo. Bolas, nem eu sabia o que queria dizer com aquilo !

Mas sei uma coisa. Sei que me lembro de duas pessoas da tua turma, tu a tua amiga Sandra, porque era tua amiga. Lembro-me de teres ido ao hospital e lembro-me de pensar que era um dia, mais tarde, ia estar contigo. Lembro-me do primeiro dia em que reparei em ti. Foi quando andava no oitavo ano, tu no sétimo. A tua sala era duas antes da minha. Estranho aquilo de que uma pessoa se lembra....

Depois lembro-me de teres entrado pelo stand da PV enquanto eu estava a falar com o Pharol de Lille. Estavas com umas calças brancas e uma camisola bege. Tinhas alguém contigo. Acho que nem sei bem o que acabei a dizer à senhora simpática que gostava de falar comigo desde os tempos da Tissue Premier. Só queria acabar aquilo, mas entretanto foste despachada, a PV é uma máquina de despachar clientes. Lembro-me de te mandarem as amostras e de me dizerem isso quando eu lhe fui dizer que tínhamos de te levar o que tinhas escolhido.

Já não sei como foste para ao meu face, nem quero saber. Foste.

E as coisas foram acontecendo. Não foi nada que seu tivesse pensado que pudessem acontecer. Aconteceram. Nem consigo perceber como. Foram assim, no seu tempo. Lembro-me, por exemplo de estar a à tua espera e pensar que tinha de te abrir a porta do carro e comentar comigo mesmo "porquê ? só fizeste isso a duas pessoas na tua vida". Não consigo deixar de o fazer, mesmo quando achas estranho. Eu também fiquei surpreendido comigo.

Não sei se entendo o que se passa, mas não vou lutar contra o que me parece certo. Não vou lutar contra o que me parece estranho, apesar de sentir como certo. Não vou.

Não sei o que pensas. Imagino algumas coisas sem sequer ter a noção de que possam estar correctas. Actualmente já não confio em mim tão cegamente como antes. A vida deixa marcas. E aprendemos. E aprendi contigo a ter os pés na terra e não especular demais. Portanto, sei o meu passado, sei parte do teu, sei parte do teu presente e sei o meu. Não sei o futuro, mas sei o que sinto acertado para amanhã.

Não acredito em forçar as situações, corre mal. Mas o inverso também é verdade. Não vale a pena lutar contra o que parece certo. Eu sei onde estou e tenho à minha frente um caminho que não imaginava. Caminho que gostava de ver onde vai dar. Não é caminho para seguir sozinho. Por isso vou ficar à tua espera. Não devo fazer mais nada.

2)

Emojis e sms's não são histórias, são outra coisa e não devem ser confundidas. Quando te mandava bonequinhos era porque achava que ias ficar aborrecida se te estivesse a ocupar demasiado tempo, principalmente de manhã. Fui devidamente avisado do mau feitio matinal, embora esteja céptico em relação ao mesmo, achei melhor não arriscar. O que queria era saber de ainda estavas por cá, se te mandasse um ponto final e recebesse uma virgula ficava contente o dia todo.

Eu também gosto de conversar contigo e aprender contigo. Mas eu não sou só um contador de histórias, somos mais do que isso.

Quanto ao tempo... Podes achar que o tempo são os segundos das horas e os dias dos anos, e são. Mas também é mais do que isso. É o segundo lento da infância, a hora que desaparece a correr no quotidiano e o tempo que não sabemos como será aos cem anos. Além destes tempo também há o tempo do agora, o segundo do momento, e esse pode demorar eternidades.

Uma pessoa tem de lidar com as contas para pagar, com os filhos, com os amigos e desconhecidos, com a família, com os cães e gatos, com muitas coisas, mas não tem de lidar com tudo. Há alturas em que é a vida que vai lidar connosco.

A nossa amiga gaivota um dia resolveu tirar as patas do chão, noutro dia resolveu fazer o que lhe apeteceu. A maior vantagem de ser adulto é que não temos de justificar as nossas asneiras a ninguém, são nossas e são preciosas. Tira os pés do chão e deixa a vida levar-te. Não precisas de lidar com nada. Deixa-te ir, não lutes. E quando estiveres a mergulhar à velocidade estonteante, não forces, basta a ponta das asas para ires onde queres, basta um sussurro, um suspiro.

3)

Deu-me a vontade de escrever...

Quando começo, nunca sei quando vou parar. Já estive anos sem escrever e estive mais de um ano a escrever todos os dias. Fiquei estourado nessa altura. Chegava a dormir 3 horas por dia. Começava depois da meia noite e parava era dia.

Nem sei o que escrever, só sei que me apetece mandar-te alguma coisa de jeito. O que me apetecia mesmo era fazer isto depois de estar contigo, de te abraçar. O que dificilmente iria acontecer. Não me parece que te fosse largar para trocar por um teclado ao som de uma playlist do youtube.

Há duas coisas que cresceram comigo mais ou menos ao mesmo tempo, a música e a escrita. Lembro-me de ir para a Moura, em Santo Tirso, de bloco e lápis, sentar-me no canto mais longe da entrada, junto da janela e escrever. Nessa altura comecei a comprar álbuns nas lojas do outro lado da rua. Ainda tenho os álbuns e ainda tenho algumas das coisas que escrevi nessa altura.

Estou convencido que a minha vida tem um propósito, e esse propósito é encontrar alguém que eu sei quem é, mas não conheço. Alguém que está destinado a se encontrar comigo. Mais ou menos pela altura em que ia para a Moura, um dia acordei sobressaltado e só tive tempo de pegar numa folha e fazer um desenho. Tinha de registar aquilo antes que desaparecesse. Guardei durante alguns anos. Estava em Vila do Conde na casa dos meus pais. Desapareceu, mas consegui não esquecer.

Não me parece que fosse capaz de desenhar aquilo de novo. Foi uma vez, nem sei como consegui.

Não é dificil de descrever. Os detalhes são importantes. Basicamente é um muro ao entre a estrada e a praia. Nesse muro há uma entrada para a praia com uma especie de elevações adornadas com granito ou betão, qualquer coisa cinzenta. Tanto o muro como a entrada são relativamente baixos. É ao final da tarde, mas ainda não é crepusculo e está tudo sossegado, sem grande movimento, nem vento. A praia tem rochas ao fundo. Do lado esquerdo há ou mais rochas perto do muro ou um edificio grande e pesado. O tom é castanho claro.

Eu estou a ver esta cena do outro lado da estrada, mas quem está sentado no muro sou eu também. Sentado de costas, a ver o mar alguém que está comigo meio deitada no muro, meio encostada a mim. Nesse dia acordei porque tinha de me lembrar do máximo possível dessa pessoa. Há coisa que sei, e outras que não. Nunca cheguei a ver bem quem poderia ser.

Há alturas em que acho que isso não passou de um disparate de adolescente, há outras em que quero acreditar que foi mais do que isso, o que quer possa ser. E há pessoas que dificilmente poderiam ser quem lá está.

Uns anos mais tarde fui para as rochas ao fundo dessa praia, de noite, escrever. Nem via o papel. Lembro-me de que escrevia coisas muito escuras nessa altura. Solitárias.

4)

Uma das questões que me fez pensar durante muito tempo, e ainda faz, é a saber até que ponto posso confiar na minha capacidade de gerir a minha vida. Inicialmente achava que bastava ser honesto e estudar. Aprender um oficio e trabalhar. A geração dos nossos pais (não sei se contigo foi igual) achava que o trabalho resolvia tudo. Hoje sei que não é assim. Já vi muito desgraçado a trabalhar dois turnos e não conseguir um décimo do que outros conseguem com menos esforço.

Depois tem a frase atribuída ao Belmiro de Azevedo em que ele diria que para se ser rico era preciso roubar ou herdar. O corolário disto é que ou és filho do papá ou és ladrão. Eu não queria nem um destino nem o outro. Se ser preguiçoso até me parecia razoável, ladrão nem pensar e incompetente ainda menos.

Seria a vida uma questão de sorte ? Eu acho que sempre fui afortunado e até me considero um tipo com sorte. Não posso dizer que hoje esteja com uma má vida, tenho um tecto, roupa, saúde, meios para me sustentar, uma família, amigos, a Catarina e tu. Não me parece mal de todo, mas chegar aqui não foi só trabalho e obra do acaso. Houve muito que superar, más decisões minhas, decisões de outros que me afectaram e alguns azares.

Quando andávamos no colégio o meu querido irmão, que deve ter qualquer coisa para resolver, entendeu por bem espalhar uma histórias a meu respeito que resultaram numa alcunha, supostamente pejorativa, mas de que eu até me orgulhava. Passei a ser o "cientista". Ele bem tentou que se mantivesse a alcunha completa, "cientista de ratos mortos", mas ficou só a versão curta. Para mim era um orgulho aprender e saber. Não me custava nada. Nem estudava. Resultado, comecei a pensar que seria inteligente o suficiente para resolver tudo. Correu mal no secundário e na faculdade. realmente era preciso juntar um bocado de suor para ter o cérebro a funcionar como devia e para se decorar algumas coisas que não podiam ser só compreendidas, e mesmo que fossem, era pouco prático não saber a versão directa da solução. Perdia muito tempo com teorias. Mas ser um tipo com boas notas não era tudo. Faltavam muitas coisas. Por exemplo, capacidades sociais. Vencer a timidez. Portanto, a inteligência não resolvia todos os problemas. Ajudava, claro, mas era preciso mais. Tinha de arranjar maneira de conseguir falar com as pessoas. Tratei de arranjar soluções. Pensava que podia manter esse assunto como uma disciplina a dominar com as ferramentas analíticas.

Quando tive de anda à procura de um estágio no quinto ano, a universidade mandou-me à Riopele. Eles queriam alguém para coordenar uma secção nova de tinturaria, tinham comprado uns jets, coisa que não havia lá até essa altura. Eu fui a uma primeira entrevista. Correu muito mal. A meio da entrevista perguntam-me se estava entusiasmado com trabalhar numa tinturaria. Disse que não, que não gostava. Ficaram furiosos. Eu lá fui dizendo que não gostava, mas gostava menos de não ter estágio e mais umas coisitas para desculpar o departamento que me tinha lá mandado. Mesmo assim resolveram deixar-me fazer os testes psicotécnicos, porque já estavam marcados. No dia dos ditos apareço eu e outro. Nesse dias estavam a passar em frente à Riopele os carros do rally. Eu costumava ir. Nesse ano não fui e só voltei mais uma vez 20 anos depois.

O tipo foi primeiro que eu. Estava cheio de confiança, não sei porquê. Esteve lá uma hora, mais ou menos até às 9.30, quando entrei eu. Sai eram quase 13.00 horas. Lembro-me da psicóloga ir buscar testes ao fundo das estantes. O último teste, já estava eu estourado e ela também, ela diz-me que não me preocupasse se não o conseguisse fazer, era para ver quanto fazia num determinado tempo. Acabei o teste em poucos minutos. Passado uns dias a Riopele pediu-me para lá ir. Perguntaram-me o que é que eu queria fazer dentro da empresa deles. Nunca soube qual foi a avaliação, mas fiquei com curiosidade e resolvi fazer eu uns testes de QI. Acho que nunca tive menos de 140 quando os fazia com alguma concentração.

Passado uns meses tive de ir à inspecção para o serviço militar. Nova bateria de testes. Mas de um tipo diferente. Tinham umas peças e tu tinhas de ver quais encaixavam em quais e afins. Era um teste muito de aptidões mecânicas. Eu tinha 5 anos de engenharia, fazia cálculos de diferenciais e cadeias cinemáticas de máquinas completas, e não conseguia fazer uma de jeito. Fiquei frustrado e desisti. Saímos e uns tipos semi analfabetos saídos do Portugal profundo comentavam as respostas. Fiquei a pensar nisso. Afinal até uns broncos podiam ser mais espertos que eu.

Continuando pela vida fora, e depois dos livros do António Damásio, onde se descobre que as pessoas pensam de maneira diferente se estiverem com a bexiga cheia, com fome ou confortáveis em casa, começo a fazer colecções de malhas. E descubro que até tenho jeito. Não percebia nada do assunto, mas corriam bem. Sem sequer eu saber como isso era possível acontecer. A minha ideia inicial era começar com umas coisitas e entusiasmar a ex, que eu achava que era bem capaz de as fazer, ao contrário de mim.

Aquilo intrigou-me e comecei a ficar atento a outras situações. Notei que era quando nem pensava de uma forma consciente que resolvia os problemas de uma forma mais eficiente. Eram as resposta aparecidas sem que eu soubesse como que se revelavam as mais adequadas. Comecei a questionar se realmente seria assim tão analítico como gostava de pensar. Hoje acho que não. Acho que sou muito intuitivo. Pelo menos a um nível consciente. Quando me concentro em qualquer problema, desligo, fico num limbo e depois volto com uma resposta. Nem sei como chego a ela.

Das duas uma, ou tenho um anjo da guarda que me vai orientado ou tenho de confiar em mim. De todas as maneiras não posso questionar algo que não entendo. Questionar é colocar em causa aquilo que me permite continuar a seguir em frente. Questionar seria colocar as minhas decisões em métodos que não funcionam de uma forma constante e adaptada ao quotidiano, ao social e ao ilógico diário. Por isso entendo quando me acham arrogante e prepotente. Até certo ponto preciso ser para conseguir funcionar. Durante algum tempo colocar a cabeça no travesseiro foi uma luta. Afinal como conseguiria sair da mediocridade ?

Mas afinal o que tem isto tudo a ver com a conversa de ontem ?

Tem a ver com a ex. Começamos a namorar na universidade. Depois acabei com ela quando soube que me tinha levado a pensar umas coisas que não eram verdade. Não gostei. Depois namorei com a Xica. Um belo dia ela resolveu contar-me, praticamente do nada, uma história qualquer de abusos, só para no final se gabar que conseguia enganar-me. Resultado, acabei com ela no dia seguinte. No segundo ano continuava na mesma turma que eu e resolvi que era altura de assentar para me poder dedicar de novo a estudar em condições. Analisei a situação, as possibilidades com as várias opções e escolhi. As coisas foram andando confortávelmente durante anos até que a Monica apareceu na empresa em Riba d'Ave. Aquilo estava para correr mal, a ex não dava sinais de querer avançar e eu estava a sentir-me pressionado. Resultado, passei a pressão para ela. Um dia disse-lhe que tinha 15 dias para marcar a data do casamento ou nunca mais me via. Foi assim que acabei a casar. Claro que gostava dela e estava convencido que era para sempre. Tinha sido a minha melhor decisão. Obviamente tinha grandes possibilidades de correr mal. E sim, desde o início eu sabia que a ela não era a pessoa do desenho.

6) 

Os meus pais compraram um lote de terreno na Vila das Aves e fizeram uma casa. Foi onde crescemos todos. De um dos lados tinha um vizinho e do outro lado tinha um lote vazio. Nas traseiras desse lote tinha um pomar. O lote ficou vazio durante muitos anos. No topo do lote, a separar o pomar, tinha um muro de tijolo cinzento com um metro e meio de altura. Eu costuma ir à noite para esse muro quando precisava de ficar sozinho, ou apenas quando me apetecia. Quantas vezes não foi para ver a lua nascer. Se estivesse voltado para o outro lado tinha uma estrela que me fazia companhia. Eu sabia que na direção dessa estrela estava alguém à minha espera. Disse isso à São várias vezes, que ela morava na direção dessa estrela. Apesar de não estar no desenho, a estrela era para aí.

Algumas vezes acontecia saber coisas sem perceber como. No início ouvia, depois deixei de ouvir, agora ando a aprender de novo a prestar atenção. A ficar atento quando me sussuram ao ouvido coisas depois de falarem comigo num corredor, ou quando insistem para ir bater a uma porta de cada vez que passava na variante e olhava para o lado direito. Todas as vezes lá vinha a conversa:

- Vai lá bater à porta.
- Estás parvo, para quê ?
- Não interessa, vai, inventa qualquer coisa, diz que gostas da varanda de vidro.

Quando estavamos na praia, não sei se reparas-te, mas eu fiquei a olhar para ti um bocado de tempo. Para o teu cabelo. Dourado. Da cor certa.

Por isso sei que temos todo o tempo do mundo. Não há pressa.

8)

O Fernando Pessoa tinha um heterónimo do qual já não me lembro que escrevia em inglês. Tenho escrito em português desta vez, mas já houve alturas em que escrevia mais em inglês. Acho que escrever em português e inglês é diferente. As palavras obrigam a um pensar diferente. O ritmo das frases também é diferente. Há coisas que ditas em português soam pouco próprias, mas em inglês são épicas. Especialmente se acompanhadas da música certa.

Tenho uma playlist no computador que sincroniza com o telemóvel. Ligo o dito ao carro, que felizmente até tem umas colunas decentes, e que juntamente com a aplicação, que ajuda a ajustar o som, dá para ouvir umas coisas. Claro que apenas quando estou sozinho, com a filhota tenho direito a Megahits, para minha grande satisfação.

Isto para dizer que tenho andando a ouvir uma música de cada vez, dias a fio. Começou com aquela do Bob Dylan. A que diz "has anybody seen mi heart" e acrescenta "tight connection to my heart". Parece muito romântica. Não é nada. É como a dos Police, "every breath you take". A dos Police é sobre uma relação opressiva. A do Bob é sobre alguém que vai embora. Apesar do inglês ser interessante para se escrever sobre algumas coisas é preciso cuidado. Pode enganar quando usado num ritmo leve e ouvido com ligeireza. Ao contrário, em português é tudo triste e pesado, mesmo o que é leve de conteúdo fica deprimente de ritmo.

Mas a música do Bob tem sido uma das três. Há mais duas. uma delas é "Sway", na versão da Anita Kelsey. É uma versão mais lenta e mais recente, o que ajuda na qualidade. Há mais versões no Youtube, uma do Dean Martin em que nem se consegue ouvir o homem no meio da gritaria das fãs e outra da Rita Hayworth, que deve ter saído de um filme qualquer. A letra começa assim:

"When marimba rhythms start to play
Dance with me, make me sway
Like a lazy ocean hugs the shore
Hold me close, sway me more

Like a flower bending in the breeze
Bend with me, sway with ease
When we dance you have a way with me
Stay with me, sway with me"

Gosto disto em inglês. Não me canso da música. É daquelas que sei de cor. Tal como sei de cor "As time goes by" de Casablanca e "Singing in the rain" do Gene Kelly. A terceira que tenho andado a ouvir (começou hoje) é uma dos Waterboys, "The Pan within". Esta música é curiosa e impossível de ficar decente em português. Pan era um deus que eu detestava, metia-me medo. Era feio, meio homem meio cabra. Estranho. Também é um dos poucos deuses que morre. E morre quando nasce Cristo. Mas é o deus da natureza, dos pastos, pastores e animais. Também é associado à sexualidade. Qual será o Cristo que matou Pan ? O Cristo certinho e politicamente escolhido em concilio, ou aquele que também foi morto pelo mesmo concilio ? Esta é a música de que mais gosto do Waterboys e não a tinha no computador. Tenho em CD, mas para resolver tive de fazer um download. Se juntarmos a isso hoje andar cheio de calor o resultado foram figuras estranhas no transito e os vizinhos da faixa do lado a ouvirem essa música. Mas apetece-me...

"Come with me, on a journey beneath the skin
Come with me, on a journey under the skin
And we will look together for the Pan within

Close your eyes, breathe slow we'll begin
Close your eyes, breathe slow we'll begin
To look together for the Pan within

Swing your hips, loose your head and let it spin
Swing your hips, loose your head and let it spin
And we will look together for the Pan within

Close your eyes, breathe slow we'll begin
Close your eyes, breathe slow we'll begin
To look together for the Pan within

Put your face to my window
Breathe a night full of treasure
The wind is delicious, sweet and wild 
With the promise of pleasure
The stars are alive and nights like these
Were born to be sanctified by you and me,
Lovers, thieves, fools and pretenders
And all we gotta do is surrender

Come with me on a journey under the skin
Come with me on a journey under the skin
And we will look together
For the Pan within"

9)

Estou cansado hoje. Também deves estar. Nem sei como consegues...

O meu pai tem a mania de exigir que todas as pessoas venham ao escritório ter com toda a gente e dizer que vão almoçar ou que vão embora. E que todos os que vão embora ao final do dia perguntem se não é preciso mais nada. Eu até brinco com isso, algumas vezes à frente do meu pai, só para irritar. Digo que sim. Quando é a primeira vez, as pessoas ficam desprevenidas. Coitadas, querem é ir para casa, estão cansadas, e vem o chato dizer que é preciso mais alguma treta qualquer fora de horas. Eu não as deixo penduradas muito tempo e acrescento logo "preciso da chave do Euromilhões". É um alívio. Quando estou sozinho, já fazem a piada ao contrário. Quando estava a pensar no que escrever hoje, pensei em escrever o que disse antes, mas também achei que ia ser uma chato com essa conversa se a deixasse continuar...

Tu deves andar estourada. Não sei como aguentas...

Não preciso ver muito para imaginar o resto. Não preciso de estar todos os minutos durante um dia ou uma semana para ver que tens um mundo em cima dos teus ombros. As preocupações e incertezas de vários inícios. Tenho a certeza que estás a conseguir e que vais fazer o que pretendes. Mas tens de ser raptada, desligada e esquecer. 

O que tens de controlar, acalmar e resolver precisa de sair. Precisas de soltar, de largar, de gritar tudo o que não podes gritar durante os dias. Precisas que as tensões se transformem em ondas que desaparecem ao longo do corpo até ficar apenas uma dormência quente e confortável. E precisas dormir, dormir sem ter de acordar, sem acordar. Dormir até a alma dizer basta.

12)

Fui tomar café antes de almoçar. Ao voltar a pé apanhei um susto. Uma miúda com uns 3 ou 4 anos saiu disparada de casa, atravessou o passeio e estacou mesmo na beira da estrada em frente a um Smart que ainda tentou se desviar. Não adiantava nada. Eu só consegui engolir um grito. Estava a respirar no sentido errado. O pai veio a correr, dizia qualquer coisa e nem sabia se ia ou se voltava. A menina parou nem sei bem porquê. Acho que no último instante viu o carro e parou. Eu parei uns instantes. Continuei e passei por em frente ao portão. Entretanto também tinha saído de casa outra rapariga, mais velha, com uns 8 anos. O pai estava agachado e abraçado à mais nova que tinha lágrimas oleosas e grandes a correr pela carita. Parecia mais triste por ter assustado e pedia desculpas do que assustada com o que fez.

Depois de almoço fui à praia. Ao sítio do costume. Estava entretido a olhar para o mar e nem reparei durante algum tempo. Mas, nem sei porquê, lá vi uma massa escura ao fundo, junto da linha deixada pela maré. A cauda era na horizontal. Fui ver o que era. Tinha metro e meio e o corpo cilíndrico. Tinha dentes e não tinha o focinho achatado. Só a boca sem encontrava aberta. Tudo o resto estava fechado, incluindo os olhos. Parecia fêmea. Tinha as extremidades das barbatanas em mau estado, mas eram as únicas marcas. Devia ter morrido à pouco.

Acabei a pensar na transitoriedade e fragilidade da vida. Uma vez a estávamos a almoçar em casa da Lurdes. A Catarina ainda era pequenita e estava no chão a brincar em frente à televisão. A sala era comprida, num dos extremos, a ocupar metade da sala, estava a mesa, no outro os sofás. De repente, sem percebermos bem porquê, a São levanta-se, corre para a Catarina, pega nela por baixo da barriga, vira-a e bate-lhe nas costas. Sai um brinquedo qualquer da boca dela. Ninguém teve tempo de perceber o que aconteceu antes de ter acabado.

Ao longo deste tempo fintamos muitas coisas, pelo menos parece. Mas hoje a pequenita parou e a São estava a ver o que mais ninguém viu. E o golfinho não devia ser novo, já tinha tido o seu tempo. Eu não sei o que acontece quando se morre. Para ser franco, intrigam-me algumas coisas. A principal é a criação das almas, dos seres, da consciência. Não entendo qual possa ser o mecanismo. Se as almas existem desde sempre, então deveria ser em número constante. Se não são constantes então são criadas. E se são criadas também podem ser destruídas ou pelo menos transformadas noutras entidades. Não sei em que parte do processo estamos, nem sei bem qual é o processo.

Einstein resolveu acabar com o mundo cartesiano de três dimensões que nos é confortável. Mas o modelo que ele propôs não passa disso, de um modelo. Descreve sem explicar. A física quântica, outro modelo, é estranha, cheia de impossibilidades lógicas que são realidades. Nenhuma das duas é satisfatória e ambas são úteis. Como tal ambas vão sendo usadas enquanto se tenta arranjar algo mais satisfatório. A teoria das cordas é uma das opções. Nessa teoria as partículas são substituídas por cordas que se agrupam em várias dimensões, entrelaçadas e torcidas. Todas as partes do universo estão ligadas. Os físicos acham complicado entender como são as dinâmicas de um universo desta forma. Eu não acho e tu também não. É o nosso trabalho. São fibras torcidas em fios e fios tecidos. Nada de complicado ou complexo. Até lhes podemos ensinar algumas maneiras diferentes de juntar os fios em tecidos. Assim cada um de nós é um pedaço do universo. Estamos ligados a tudo e tudo a nós. Passado, presente e futuro. E quando morremos só podemos continuar no mesmo tecido ou passar para outro. Mas enquanto cá andarmos seremos gente, estrelas e pó. Nunca vazio, nunca seremos nada.

13)

Continuando o tema de ontem da teoria das cordas, e para terminar, não devíamos dizer "eu estou aqui", devíamos sim dizer "eu sou aqui". Porque aqui o universo sou eu. Esta parte de tudo que somos cada um de nós é aqui onde quer que estejamos. E se somos aqui também somos o resto, porque tudo está ligado. Eu gosto da teoria das cordas.

Hoje estive com a filhota. Como de costume andamos a ver o Porto. Ela gosta e eu também. Almoço no BaixoPito e depois, Rua de Santo Ildefonso, Batalha, Sé e volta pela Rua Passos Manuel. Ainda fomos à Afurada antes de virmos para casa para ela estudar. Quando a fui buscar tinha uma coisa para me contar. Estava toda orgulhosa. Durante a aula de história, ela e a colega do lado, a Maria, tinham desenhado na carteira um coração e escreveram dentro o nome de quarenta e cinco bandas de rock. Estava toda contente. No fim tiraram uma foto e pedira para à professora as deixar ir buscar água e sabão para limpar. Claro, deu direito a comentários. Os outros perguntaram se elas não tinham outra vida. A Maria disse que até nem gostava daquilo, mas o irmão e o pai começaram a meter-lhe o rock na cabeça. E para continuar puseram nas colunas do recreio música. Não sei qual, mas a listagem era interessante, Red Hot Chilli Peppers, Nickelback (a Catarina gosta), Korn, Metalica, AC/DC (também gosta), Linkin Park (gosto eu), Pink Floyd, Doors, Nirvana, Guns and Roses e por aí fora. Como a Catarina não conhecia os Doors, no fim do jantar estivemos a ver um bocado do filme. Antes disso, no carro, na viagem para o Porto, ficou a conhecer mais um grupo, estava a jeito, The Waterboys, e uma música que anda sempre comigo ultimamente, The Pan Within. Ela merece ouvir umas coisas.

Quando a saímos de casa para a levar a Famalicão o comentário foi que a lua estava espectacular. E ontem também. Quando estava na autoestrada ontem com a mãe parecia quase de dia. Via-se bem. Lá lhe contei que eu desligava as luzes. A chagar a Santo Tirso, quando finalmente pousou o telemóvel e as mensagens, pede-me para desligar as luzes. Só lhe disse que era mesmo filha do pai dela. Riu-se. Deixe-a em casa e fui tomar café ao Chocolate. Estava lá a Bela. Quando vinha para o Porto lembrei-me de uma música e mandei um sms à Catarina a dizer:
-Música para as aulas de história - Pink Floyd - Another Brick in The Wall
-Procura no YouTube.

Quando estive no tribunal por causa dela, ela disse ao juiz que o dia em que gostava mais de estar comigo era a quarta porque estávamos só os dois a jantar e a ouvir música no carro. Lembro-me de ela pequenita, com uns 9 anos, a tocar umas estrofes da Sinfonia do Novo Mundo no piano do hotel em Praga. Foi a última viagem que fiz com ela. Na última noite fomos dar uma volta só os dois. Estava tudo com vontade de ficar no hotel menos nós. Fomos até ao rio, um bocado a montante da ponte. A miúda estava mesmo melancólica por ter de vir embora. Tenho uma foto dela nesse momento.

Ainda agora me custa que ela não tenha mais experiências destas. Ela foi a Madrid com a escola, esteve no Prado e no Reina Sofia. Andei anos a tentar convence-la a ir comigo. Com a mãe também não vai. Nunca foi comigo desde o divorcio. O último museu onde fomos foi ao Van Gogh. Voltou de Madrid impressionada com os quadros, não viu todos os que eu lhe disse para ver, comentava o que viu. O que mais gostou foi Guernica. Realmente é impressionante. Disse que teve medo das pinturas negras de Goya, principalmente de Júpiter a comer os filhos. Fico triste por ela não aproveitar tudo o que podia. 

Mas antes matava-me. Antes de ti. Não sei o que me fazes. É como a história da empresa e das cotas. Estava a preparar-me para arranjar uma confusão monumental, uma guerra. U colega contava com isso. Aliás, ainda esta semana disse que não percebia como eu tinha aguentado. Quem conseguia engolir coisas dessas era ele e não eu. O que seu sei é que bastou uma pergunta tua quando estávamos a falar acerca das percentagens. Uma pergunta. "E vale a pena ?"

Já tenho um antes e um depois. E o depois ainda mal começou. Sendo que este depois é só um dos depois. O homem que escreveu o livro da gaivota escreveu mais coisas. Já li mais livros dele. À muitos anos, no liceu. Não sei onde param esses livros. Só tenho três comigo, sendo que dois são iguais. Um deles é uma viagem de avião, um caça monolugar, de noite pela Europa. Outro é sobre a procura que ele e a mulher fizeram acerca deles mesmos entre mundos e tempos. Outro chama-se "A ponte para a eternidade". Os temas são parecidos. Sei que acabei muitas vezes deitado sozinho a tentar encontrar alguém num tempo ou lugar para lá de mim. São coisas que nunca contei a ninguém. Nem me parece que pudesse contar a outra pessoa. Mas a ti faz sentido.

14)

A música de hoje não é só uma. É mais um senhor que morreu o ano passado, Leonard Cohen. Não sabia grande coisa dele, mas o Google dá uma ajuda. Fiquei a saber que era canadiano, que quem tinha um feitio horrível afinal era o Lou Reed (às vezes confundo os dois). Também fiquei a saber que ele começou por escrever poesia e só aos 30 anos é que começou a cantar, pela mão do produtor que também descobriu o Bob Dylan. Há coisas engraçadas. Quando o Bob ganhou o Nobel houve algumas pessoas que comentaram que era mal entregue, era uma coisa pouco merecida. Alguma coisa devia merecer. E o exemplo que davam muitas das vezes era o do Leonard, que era melhor escritor. Não tenho dúvidas de uma coisa, são diferentes. Vidas diferentes, em lugares diferentes e interesses diferentes. 

Tem uma música dele de 1984, Dance me to the end of love, que é especial. Eu gosto deste tipo de ritmos, lentos e marcados. É aquela música que se poderia ouvir num tasco qualquer em Buenos Aires (se algum lá for pode ser que mude de ideias) ou numa cave cheia de fumo ou numa brasserie, ambos em Paris, rive gauche sem dúvida, e nunca antes da meia-noite, de preferência depois da hora oficial de fechar, quase vazios. Depois tem a letra, muito boa. É uma letra escrita por alguém muito mais novo que eu. Pelo menos por alguém que ainda tem mais vida para viver. É alguém que ainda vai ter filhos, por exemplo.

Nunca achei que conseguisse dançar decentemente. Sou uma desgraça. Basicamente tenho falta de coordenação entre ouvido e o corpo e entre partes do corpo. A juntar a isso tenho zero capacidade de improvisar ao ritmo de uma música pouco conhecida. E para terminar, fico acanhado. Não gosto que olhem para mim, o que ajuda bastante, a falta de jeito costuma ser indiscreta.

Mas era capaz de a dançar contigo. Devagar, como a música. Na penumbra. Até ao fim da noite. Até não haver fim. Roubo as palavras e digo que dançava contigo através do medo, olhava para ti até não haver mais ninguém, junto a ti, até as paredes se tornarem pó. Até não haver fim. Até o tempo desaparecer. Ficava contigo, deitados, debaixo de uma lua a subir no céu sem se mover. Para não acabar. Para conhecer cada pedaço de ti. Cada recanto de alma e pele. Cada cor, cada cheiro, cada toque, cada respirar e cada bater do peito. Cada linha, cada curva. Até não haver mais tempo no mundo.

15) 

Fui ao museu do Belvedere uma vez. Entramos lá por acaso. Gostamos da fachada do palácio e fomos ver o que era. Além do palácio e dos jardins nas traseiras com vista para Viena e uma guarda de honra de esfinges, tem um museu dedicado a Klimt. Fiquei a conhecer e a gostar. Klimt é o pintor fetiche de Viena. Um dos quadros que mais gostei foi de uma floresta, mas os mais populares são os retratos. Cheios de dourados. Com aplicação de folhas de ouro. Nunca mais vi os dourados da mesma maneira. O quadro que aparece nos folhetos da cidade é "O beijo". Este quadro tem duas pessoas abraçadas. Dele não se vê a cara, dela sim. Estão ajoelhados num prado de flores cobertos de ouro. Se esquecermos estarem de joelhos, o quadro é bastante clássico nas posições dos retratados. Mas quadro é quadrado e as faces estão bastante altas, a roçar o topo, o que torna a composição estranha e pouco usual.

Outro beijo que define uma cidade é "Le baiser de l'Hotel de Ville" de Robert Doisneau. Tirado de uma cadeira numa esplanada em frente à câmara de Paris. Pelo meio das pessoas que passam e dos carros na rua, com os edifícios em fundo claro, temos duas pessoas a beijarem-se. Ele chega por trás e ela inclina a cabeça e deixa cair os braços ao longo do corpo. Estão ambos vestidos de escuro (a foto é a preto e branco, como todas as fotos deveriam ser). Estão no meio da composição, no meio da corrida do dia, e mesmo assim, estão e ficaram nesse momento.

Quem olha para ambos não pode duvidar que o tempo parou. Parou o passar das estações. Pararam o dia e a noite. Pararam os carros e o mundo. Um beijo deve ser isso, deve fazer desaparecer tudo menos o momento, menos o outro. Pode ser procurado, encontrado ou roubado, mas não pode ser menos do que dado. Entregue rendido ao infinito.

16)

Os beijos não são todos iguais. Os de ontem eram de certa forma frios e contidos. Em Paris as pessoas estavam de casacos, sobretudos e cachecóis. Em Viena eram mantas douradas que cobriam as pessoas. São beijos de inverno, de manhãs de orvalho ou tardes de outono. Mas também há beijos de verão. São beijos molhados de noites quentes, de tardes preguiçosas ou manhãs luminosas. No inverno os corpos enroscam-se, no verão tocam-se. 

O inverno é a altura das mantas, das lareiras e do aconchego. É tempo de castanhos, cinzas e pretos, mas também de laranjas e vermelhos. É a altura do som da chuva e da escuridão da noite. Quando ninguém se move mais do que o necessário. É o tempo da pele. O inverno é quando se sente tudo de uma só vez, quando todo o corpo a sente o outro todo. Quando as conversas são suaves e lentas. Quando os assuntos são profundos e longínquos. É tempo de fusão, de mergulhar um no outro até ficar só um.

O verão é o tempo do sol, do luar e das estrelas. É altura de areia e mar, dourados e azuis. Momentos de verde e sombra. É quando a chuva faz a terra cheirar a húmido e o céu pintar-se em arcos de sete cores. É tempo de olhar, de percorrer todos os centímetros, um a um, devagar. De tocar um de cada vez, na sua vez. De fazer os dedos escorregar pelo calor da pele. De sentir o cheiro e ver. De sobrecarregar cada sentido com cada detalhe. O verão é movimento, é fazer da noite dia e tornar a noite em manhã. É ver nascer o sol e o por do sol. É ver com o sol e com o luar. É quando as conversas são leves e se arrastam pelo passado.

Por isso deve haver beijos de verão e beijos de inverno. Beijos pelo corpo um centímetro à vez e beijos onde se concentra a totalidade da pele. E também deve haver beijos sem estação nem dia. Beijos que tocam a alma. Que ficam tão fundo que nem se sabe como chegar ou sair. Que começando impulsivamente ou devagar, não se sabe quando acabam. Beijos que ficam marcados. Que deixam marcas. Beijos que elevam e levam para um lugar só a dois. Onde nada mais conta do que aquilo que se toca, cheira, vê e sente. Onde as preocupações e os medos não entram. Onde o ontem e o amanhã não existem, só o agora é verdade. E beijos que te trazem devagar de volta, com suavidade, para não sobressaltar o que precisa de repouso. Que trazem para os sonhos a realidade.

17)

A realidade das alvoradas que chegam sem se fazerem notar, devagar, no meio de sonos e despertares. Alvoradas que seguem noites intensas e suaves. Noites onde os ritmos são lentos, rápidos e completamente parados. Onde os silêncios dizem mais que palavras e as palavras não são para serem ditas, são sons que saem do fundo do corpo. A realidade acaba fundida com os sonhos. E os sonhos são realidade. Não se sabe se estamos acordados ou a dormir. Apenas se está vivo. O mundo é aquele lugar e aquelas horas. São horas nossas, minhas, tuas.

Anda... Deixa que o vento te traga. Te levante e faça chegar. Deixa-te ir alto. Não te deixo cair. O vento não te deixa cair. Aquela praia e aquele mar e aquela lua são onde quiseres ser. Onde te deixares ser.

Vem... Ganhaste o direito de ser egoísta. Mereces poder seres tu. Sem ninguém a quem prestar contas. Ninguém mais do que a ti para a vida. Para estares viva por ti. Para sentires cada parte de ti acordar e adormecer sem forças, sem vontade de sentir mais nada do que esse momento.

Anda, vem, deixa-te ir... Para lá da realidade, para a terra onde só estamos nós. Deixa-te ir. Fica até acordarmos e voltarmos a adormecer. Fica. Vamos aproveitar e transformar minutos em momentos, em memórias e eternidades. Em vontades de ir e de ficar. Deixa-me fazer-te esquecer o mundo por um momento. Que nesse momento o mundo possas ser tu. Que o momento seja teu, nosso.

Um beijo é uma porta, uma entrada, um início. Um beijo é um olá, um gosto de te ver, um começo. Um beijo relaxa, distrai do que se vinha a pensar. Obriga a concentrar no instante. Um beijo junta e aproxima. Trás-te para mim. Anda e trás um beijo. E outro, outro e mais outro. Trás beijos, deixa cair o pescoço, envolve os braços, deixa que te abrace e aperte junto a mim. Vem com beijos e deixa a as mãos correrem a pele. Corre a pele com o corpo. Deixa que o cabelo te tombe para a cara, para as costas, para os lados. Deixa que as pernas estiquem, que as costas se dobrem, que o ventre se contraia. Deixa-te ir. Vem. E quando passar e ficares apenas com vontade de estar, sem te moveres, sem falar, deixa-te ir de novo. E sonha e acorda e deixa-te ir. 

Vem... Anda... O nosso lugar é juntos. O nosso tempo é o agora. É teu o direito de comigo seres tu, sem medos, sem pudores, sem barreiras. Deixa-me ser também contigo. Vamos ser dois num, como o destino escreveu. Vamos para um sítio nosso, sem mundos, sem espaços, sem pressas e sem tempos. Vamos. Deixa-te vir. Deixa-me trazer-te para esse sítio e ajuda-me a ficar. O tempo que pudermos, o tempo que quisermos, as eternidades que vierem.

Anda... Eu trago-te... Vamos...


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